FOI DE INCERTA FEITA - O EVENTO. QUEM PODE ESPERAR coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei a janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda de três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse - o oh-homem-oh -com cara de nenhum amigo(...)
-"Eu vim perguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."(...)
-"Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. (...)
-"Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um homem do Governo, rapaz meio estrondoso... Sabia que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que eles é de seu tanto esmiolado..." (...)
-"Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmigerado...faz-me-gerado...falmigerado...familhas-gerado...?"
(...) E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele a famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
-"Saiba vosmecê que saí ind`hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe perguntar a pergunta, pelo claro..."
-"Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo-o livro aprende as palavras...É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engabelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau de peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esse trizes.
-Famigerado?
-"Sim senhor" (...) Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
-"Vosmecê declare. Estes aí não são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."
Só tinha que desentalar-me. O homem queria escrito o caroço: o verivérbio.
- Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...
- "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mas, me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"
- Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
-"Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?'
- Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...
-"Vosmecê agarante, pra paz das mães, mão na Escritura"?
Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
-Olhe: eu como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado- bem famigerado, o mais que pudesse!...
-"Ah, bem!..." soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagrava-se, num desaforéu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: -"Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." e eles prestes se partiram. (...) Disse: -"Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" (...) -"Sei lá, às vezes o melhor mesmo, para esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: -"A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar na minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir e mais, o famoso assunto.
ROSA , João Guimarães. Famigerado (Retirado do livro Primeiras estórias. pags. 55 a 59. Rio de janeiro: Ediouro , 2011.)